Monday, May 05, 2008

O Espaço como imaginação do saber


Vejam como a ideia «castrante» [queria dizer colonial mas esta já está muito gasta] de que o espaço territorial da escola e da compenetração do estudo se resumem a quatro paredes é tranquila e magestosamente posta em causa, para não dizer ultrapassada, por estas quatro crianças que testemunham que a escola deixou de ser oficialmente [vamos formalizar o informal ok?] o que na prática não era, e nunca devia ter sido, a emanação de um espaço territorial, para se tornar cada vez mais num espaço cosmopolita subalterno, ou seja, o passeio de um bairro qualquer de Maputo, e que perante a minha pergunta acerca do que estavam a fazer responderam: «Estamos a estudar e brincar».


As lingua(gens) que abrigam os nossos lugares ou um ensaio sobre as lingua(gens) artísticas

Ao tio Zé

Este texto é inspirado em dois motes. O primeiro é da autoria de José Craveirinha “a língua é um grande lugar de abrigo”. O segundo, “estar na língua como cultura”, é da autoria de Eduardo Lourenço.
Um, poeta maior de Moçambique, é “fazedor de vaticínios infalíveis”, tal como escreveu no seu poema do futuro cidadão. A poesia de Craveirinha está impregnada de vida de magaíças, Alices de botas altas, milícias Faquires, “tanjarinas” de Inhambane, etc. Isto leva-nos a concluir que Craveirinha participa activamente da vida e do imaginário dos moçambicanos. Portanto, Craveirinha faz questão de incrustar-se na história dos moçambicanos.
Eduardo Lourenço é um filósofo português e escreve coisas como “As saias da Elvira e outros ensaios”, “Portugal como destino”, “mitologia da saudade”, “da identidade europeia como labirinto, entre outros”. Ausente, Eduardo Lourenço está sempre presente a pensar Portugal.
Os dois têm algo em comum: Usam a língua(gem) português(a), cada um no seu contexto e com os seus significados, mesmo que haja alguns signos repartidos de paredes meias pelos dois. Adicionalmente, os dois são profundamente humanistas nos seus escritos, pondo sempre o Homem no centro da história e da cultura.
Ora são estes subsídios que inspiraram o meu argumento: Se tanto Craveirinha como Eduardo Lourenço escrevem em português sobre os mais diversos temas, mesmo que em modalidades diferentes (ensaio e poesia), a lingua(gem) em que os dois se expressam precisa de algo mais para que diga mais algo. Isto é, para que seja entendido o que eles escrevem e veiculam são necessários outros artifícios de decifração. Esses artifícios são a intersubjectividade e a partilha de significados contextuais que ajudam a enformar e a entender os símbolos e outros sinais em referência.
Sei que tudo isso são truismos “sociologueses”. Sei, também, que nunca é demais revisitá-los porque nesses truismos expressos em sociologuês está, provavelmente, o cerne da coisa a que nos queremos referir: lingua(gem), signos, símbolos e partilha dos seus significados que se constroem nesse tecido quase inconsútil que é a história.
Uso algumas evidências empíricas comentando-as à luz da teoria social, particularmente do historicismo. Este movimento filosófico desenvolveu-se especialmente na Alemanha, no final do século passado quando pessoas como Dilthey, Simmel, Troeltsch e Meinecke punham começaram, de forma inovadora a problematizar a história. Dilthey dizia que a história da cultura e a filosofia eram uma e a mesma coisa porque os escritos de Gerrinus sugeriram-no a possibilidade de encontrar nexo entre a história e o pensamento filosófico. O argumento fundamental de Dilthey é que a vida é a suprema realidade e a história é a expressão genuína e única da vida. Portanto, se quisermos pensar com Dilthey, só podemos entender, por exemplo, o retrato que Craveirinha faz à sociedade moçambicana, particularmente a colonial, se entedermos que Craveirinha fazia questão de mergulhar nela e decanta-la em versos. Do mesmo modo, só podemos entender os hibridismos linguistico-literários de Mia Couto se entendermos a história cultural o contexto e a filosofia da sua criação artística. Paralelamente, só poderemos entender os signos não verbais utilizados nas artes plásticas, como seja, os mochos de Chissano, as mulatas da Mafalala de Chichorro, os lagartos do Ídasse, os olhos de Malangatana, ou as sinuosas estradas espatuladas de Estevão Mucavele, se tivermos em linha de conta o mesmo preceito: a vivência, a historicidade, e as lingua(gens) daí resultantes que, em última instância, estruturam as sociedades a que fazem referência, portanto, as nossas sociedades.

1- Mutxisso
José Craveirinha disse certa vez que “a língua é um grande lugar de abrigo”. Querendo-me eu fiel depositário da subversão que lhe é característica, optei por dizer que a(s) língua(gens) abrigam lugares que podem ou não ser nossos, esses muitos lugares nenhuns que, portanto, abrigam as nossas utopias: cá está uma aporia interessante.

De facto, sei que as lingua(gens) abrigam, obrigam e desabrigam muitos significados utópicos que podem não valer em sítio nenhum, se não houver partilha de significados. No entanto, esses mesmos significados valem onde e para quem os entende partilhando símbolos, e outros que tais, nos seus grupos de referência ou de pertença. Eis o meu primeiro truismo.

Sei, por exemplo, que partilho muitos significados com o tio Zé e com outros avós, irmãos e amigos. Subscrevo também que há, decerto, zonas de insignificâncias não só entre mim e o tio Zé mas, e sobretudo, entre mim e outras pessoas e coisas que não falam a minha lingua(gem). Deve ter sido por isso que escrevi no meu livro Globatinol ou o garimpeiro do tempo, aquilo que tenho por meu segundo truismo:

“Só para começar com a seca apresento-vos as minhas (de)limitações: o inglês e o Índico.
O inglês faz-me igual a mim mesmo, o outro. O Índico faz-me diferente, sou dos que está do lado de cá, do ultramar:overseas. Sou o mesmo outro, este, neste tempo e neste espaço. Sem neve: never!

Ora, cá está o meu terceiro truismo: Se nunca vi nem vivenciei a neve ou o seu espírito, ou se nunca me foi explicado o que ela é, mesmo que a possa nomear, a neve não me diz nada. Portanto, neste sentido apenas a lingua(gem) de per si não nos permite construir essa realidade e nem nos ajuda a apreendê-la. Posta como está a questão a lingua(gem) não é suficiente para entender como ela estrutura o ser das coisas, que seja, por exemplo, essa tal neve.

Melhor, o simples facto de que alguém no Chibuto, por exemplo, aprenda a verbalizar o termo neve, isso não significa que esse tal alguém entenda, apreenda e represente o ser da neve, como por exemplo, um esquimó pode fazê-lo, indo até ao ponto de tipificar a neve que habita o seu quotidiano e o seu espírito, de acordo com os seus múltiplos usos. Portanto, existem outros atributos que explicitam as lingua(gens) sejam elas verbais ou não verbais. Este é o meu quarto e último truismo.


2- Mzenu (canto grande)

O que disse acima no mutxisso (que quer dizer acordes iniciais na orquestra de timbila) vai ser consubstanciado por algumas evidências empíricas aqui nesta tentativa de canto grande que, julgo, ajudará a esclarecer o meu argumento. Aqui arrolo e comento nove exemplos sendo os primeiros oito relativos a lingua(gem) verbal e o nono a lingua(gem) não verbal, mais especificamente da área das artes plásticas.

2.1-Eusébio Tamele cantou o Chibuto dizendo que é uma terra cujas árvores davam dinheiro (a mi-sinha ya male). Esse facto cantado numa bonita balada, poria estupefacto qualquer cidadão duma terriola como, por exemplo, Arraiolos. Jamais lhe passaria pela cabeça que Eusébio Tamele se referia aos cajueiros, sendo que o dinheiro seria a castanha de cajú, esse falso fruto.

2.2- Só alguém que sabe o que é uma ria e vivenciou a cidade da Beira poderá entender o que estou a dizer quando digo que o Chiveve é uma ria. Posso partilhar esse dito e sua compreensão com alguém que teve a vivência tanto da Beira como a de Aveiro, por exemplo. Mas, ao mesmo tempo, esse facto pode servir para nos separar identificando-nos, tanto a mim quanto a esse alguém de Aveiro. Eu direi que o Chiveve tem macacana (tilápia, cacana cá no Sul é outra coisa!). Provavelmente ele dirá que na ria de Aveiro há as melhores inguias do mundo. Duas referências, dois paladares distintos, pois acredito que na Beira as enguias poderão ser tomadas por cobras marinhas.

2.3- Atentemos para a anedota muito contada do português em Nova Iorque. Uma vez no restaurante e querendo gabar-se do inglês que falava com profeciência pediu um prateition de batatation fritations com ovotion a cavaleition e saladation. Tendo lhe sido satisfeito o pedido, o português gabava-se aos seus patrícios da sua competência na língua inglesa, quando o servente o interrompeu: “pois é, se eu não fosse português comias mas era merdation!” Cá está um servente que tinha competência nas duas línguas, e que por isso, entendeu o que o seu patrício queria dizer com bifation com batatation fritation, tanto foi assim que satisfez o seu pedido mesmo que feito nessa língua estranha tipo português falado em inglês.

2.4- Temos aquele caso que li no blog do sociólogo moçambicano Elísio Macamo. Diz ele que encontrou alguém que se expressou mais ou menos nos seguinte termos: pois é, hina sempre ita ranjara ama soluções para problema ledzi! Dizia o Elísio, se bem me lembro, que não sabia se aquilo era changana falado em português ou se português falado em changana e que, de qualquer modo aquilo era um changanês! Mas certo mesmo é que quem assim fala sabe, no mínimo as duas língua(gens) e articula na que mais domina o que quer dizer que exclusive relativamente a segunda língua em questão. De facto, no caso o problema põe-se para os que, sendo falantes do changana, não entendem nada o português e a questão é: haverá partilha de significados, neste caso? Será entendida essa conversação se ocorrer entre dois falantes, sendo um dos quais não falante de português, mesmo que básico?

Parece-me que não, uma vez que os radicais das palavras usadas no diálogo são duma língua desconhecida, embora seja a língua oficial deles(nossa) de Moçambique. Todavia para os que sabem as duas trata-se efectivamente de changanhês, uma língua franca ao jeito do fanacaló das minas do Jone.

2.5-Só para animar, posso contar-vos aquele caso que me aconteceu em Chimoio quando professor secundário. O meu amigo Grácio, professor de língua portuguesa, corrigia os testes trimestrais e de repente desata a rir-se. Qual era a questão? Pois bem, o texto tratava duma atitude de mau carácter da hiena que, tendo convidado o gwazi a almoçar, depois quis comê-lo. A pergunta no teste era: acha que a atitude da Hiena era correcta? Comente.
E a resposta não tardou: “o comente do Gwazi era a hiena”.
Faz sentido a resposta do estudante pois mostra que o estudante conhecendo o radical comer e sabendo que, na mesma lógica que a de arguente, repetente, falante, claro que seria comente aquele que come!

2.6-Quando a minha avô queria referir-se aos cooperantes que começaram a aparecer aos magotes depois de 1975 dizia alto e em bom tom: estes recuperantes estes!
Ora, nunca percebi se ela se queria referir aos ”vientes” como se diz hoje em Niassa, ou “vindouros” como se diz na cidade de Tete ou aos expatriados chegados a Moçambique, os cooperantes, como se diz no glossário da indústria do desenvolvimento, para citar Elísio Macamo, ou se se referia àqueles que recuperam algo perdido, uma espécie de neocolonialismo astuto.

2.7-Ou aquela responsável da OMM que querendo apresentar a sua congénere de Angola da OMA disse: esta senhora é da OMM de Angola!
Está óbvio que aqui houve comunicação, pelo menos os moçambicanos presentes entenderam o que se pretendia dizer. E presumo que as kambas angolanas também tenham entendido o discurso.

2.8-E poderiamos listar uma série de equívocos contextuais como ouvir cheiro (sentir cheiro), o problema que estamos com ele (o problema que temos em mãos), procureie, procurei procurei vi não encontrei, como se diz na terra do meu tio Majawa.

2.9- Este arrolamento é aplicável às lingua(gens) não verbais muito utilizadas nas artes plásticas: o que significam para um Russo, um libanês ou um croata que, não tendo tido contacto com os signos e os contextos locais, aquelas mulatas boazudas, presumo, da Mafalala nas pinturas de Chichorro?
E os mochos nas esculturas de Chissano?
E os lagartos nos desenhos do Ídasse?
E os olhos nas pinturas de Malangatana?
E os corpos humanos com cabeças empassaradas na pintura do Dito?
E os bichos artesanais na obra de Jorge Dias?
E as montanhas e estradas sinuosas espatuladas na pintura de Estevão Mucavele?
Em que ficamos?


3-Mabenthla

As afirmações que decorrem de lingua(gens) verbais acima transcritas cabem nas “brinquiações” de Mia Couto. Digo isto porque, por um lado, são (re)criações que resultam de desvios linguísticos de falantes de português como língua não materna. Por outro, tais “brinquiações” são invenções de alguém que sendo falante de português como língua primeira, a domina, tendo por pano de fundo toda uma vivência e o contexto em que ocorrem tais desvios enunciados por falantes não nativos, quais Calibans: “Já que me ensinaste a língua, a minha função é atirar-ta aos dentes”.

Acredito que, traduzido para Ci-Sena, Ci-Maconde ou Ki-kuyo, um texto de Mia Couto não terá a beleza e a literariedade que tem na língua portuguesa. Penso que para que tenha alguma significância, o tradutor deverá ser competente nas duas línguas tanto no falar quão na grafia. Mas, mesmo assim, parece que muito do que se diz nos hibridismos linguísticos coutianos perder-se-ia nessa operação, o que faria jús ao dito “traduttore traditore” (tradutor traidor).

3.1 A historicidade, os contextos e a singularidade que explicitam as lingua(gens)

Penso que o que pode ajudar a entender todo este emaranhado são algumas acepções que
peço por empréstimo a teóricos historicistas alemães como Mommsen, Dilthey, Rickert, Ranke, quando se referem ao Erlebnis isto é, a experiência vivida, “porque o espírito é acessível só a quem o vive ou revive interiormente”.

E tal como defendem os historicistas, eu junto-me a Dilthey para dizer que a lingua(gem) é o instrumento através do qual, a história e a filosofia se tornam a mesma coisa. Isto é, Dilthey sugere encontrar nexos entre a história da cultura e o pensamento filosófico. Quer dizer que para Dilthey “a vida é a suprema realidade e a história é a expressão genuína e única da vida. Dado que a vida só pode ser compreendida através da história, a única e verdadeira filosofia é a história”.

Este parece não ser um truismo, enquadra-se melhor na categoria de eresia para aqueles que pensam como os positivistas contra os quais Dilthey esgrimiu os seus argumentos.

3.1.1. Aqui começa a minha viagem com Eduardo Lourenço. A primeira coisa que ele me diz é: “Está-se na língua como cultura”. Cá está aquilo que dá interesse sociológico a lingua(gem). Na verdade, a lingua(gem) ajuda-nos a analisar os significados, as conversas, a entender a construção social da realidade, a formação das identidades, a socialização, entre outros. Portanto, a lingua(gem) não só estrutura o social como dá-lhe significado através dos conceitos ou das conversas que são intermediadas por esses conceitos, que são por natureza, culturalmente enraizados. E quando assim o afirmo estou a dizer que a lingua(gem) performa maneiras de pensar, sentir e agir dos indivíduos. Só assim os indivíduos estão aptos a entender os significados das altamente mudas falas dos mahungos[1] ou o ser das coisas que se podem ler nas entrelinhas das enfabulaçães malangatianas ou idassianas feitas arte. Só assim, os indivíduos estão em condições de ler a experiência vivencial de Estevão Mucavele nas montanhas capetownianas retratadas nas suas pinturas. Só assim estaremos aptos a perceber a vivência suburbana de Chichorro através das hipertrofiadas pernas mulatas mafalalensis dos seus quadros. Do mesmo modo, só assim podemos ouvir acordes de Daíko ou as trovas de Fany Mfumo na poesia de Craveirinha. Ou entender o mau agoiro prenunciado nos mochos de Chissano escultor que talhou a sua própria vida. Ou, poderemos dar uma segunda interpretação ao mocho, animal solitário, qual companhia nas noites negras sem luar.

E para aumentar este manacial explicativo aqui cabe vez a outros conceitos tais como memória e contexto. A memória, colectiva ou não, tem a sua cota parte na explicação das coisas. Se, por exemplo, eu vos disser assim de rompante, “se não fosses tu”, o que é que vos ocorre? Os da minha geração, tipicamente, referir-se-ão ao repolho e ao carapau. Para os de hoje, carapau significa automóvel Toyota recondicionado trazido de Durban, mais ou menos ao desbarato, que é recurso de pessoas de parcos recursos. Portanto, uma mesma palavra que quer dizer coisas diferentes, embora no essencial queiram dizer a mesma coisa, no fundo: carestia, pobreza, falta de melhor.
Ora esta disparidade de intepretações esta polissemia de significados só é entendível se entendidos os contextos. Só para terminar irei ler-vos o texto “na senda de caliban” inserido no meu livro “Poema and kalach in love”:

Conclusão
Patologiciar cada um dos nossos encontros
Nas manhãs das noites cacimbadas
Chega-nos inoculada a voz que somos
Wapswa Muchine!
Quão desdouro tu não portas
Sempre que te abeires de mim
Com linguajares ultramarinos
Coitos à língua e à comunidade linguística?
E a verdade eleva-se a outros expoentes, triplifica-se
Tanto quanto se saiba, soberana, com suas versões essas mil e não sei quantas
Concepções idealizadas autónomas, reais, vivificadas,
Persistentes, desparasitadas
(e sem rigores semânticos)
Simplesmente escondidas. Redescubro-as
E volto a procura-las porque a verdade é isso: ir descobrindo mentiras:
Wapswa Muchine!
Esta é também a nossa língua. Próspero.


Filimone Meigos
(Colóquio português língua global, Maputo, Março de 2008)


[1] Mahungo cumprimento ritualizado em cujo diálogo revezado o parceiro vai vozeando em tom concordato para dar a entender que o diálogo prossegue e está a ser seguido.